segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Alma beat

Paguei dez prata por um Lawrence
Felinghetti legítimo no sebo da Vila.
Tinha posto a cabeça desse cara à prêmio
fazia tempo.
Agora minha alma beat pode descansar
por mais um verão.
Tempo suficiente para voltar à caça
às borboletas brancas
que Lorca viu nas barbas do velho Whitmam.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Liame de letras

acordei querendo
ocupar letras comigo:

as oníricas
me levam ao dicionário,
as fêmeas gravitam,
aerógrafo de gueixas

tento que me digam
a medida exata
do que há em mim
que resvala

busco que me segredem
algum mistério em mim
que desconheço

que me passeiem
sons e esporas:

estranho
apesar das horas.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Românticos da rua 50

Escarafacho entrou com um brilho estranho nos olhos.
Impossível não perceber e desviar, como se encarar
fosse invadir. Noite mal dormida; um cigarrinho à toa
sem o devido colírio; um estado pós crise de choro,
depois de assistir na TV um desses casos de superação
da miséria humana que sempre eleva uns pontinhos e
deixa a concorrência correndo atrás de miséria maior;
o que seria? Escarafacho pôs os óculos escuros, recolocou
os fones de ouvido, passou uma panorâmica de 180°
por sobre as divisórias: estava pronto para sumir.
Era sempre assim antes do próximo surto.
Alguma coisa disparava seu olhar. Seus passos pareciam
os de outra pessoa, nos mesmos sapatos; o segurar da xícara
no cafezinho ganhava um ar de mistério, com domínio total
do espaço aéreo entre a boca e o pires, um espaço em colapso,
a depender da gravata e do nó.
Fora assim quando mergulhou na burca negra num bazar em Cabul;
o mesmo quando deixou um bilhete e seguiu para um Quilombo.
Mas dessa vez havia um componente novo naquele prenuncio
de dilúvio. Mesmo nos piores momentos, Escarafacho deixava
transparecer certa alegria em contrariar a sorte. Agora, parecia
trágico, sempre falando em femme fatale, ética, religião...
causava medo ouvi-lo divagar sobre ninfas e medusas.
Não que ele fosse mais neurótico que a maioria dos homens
de sua geração, tentando manter a pegada dos trinta.
Bastou que nos distraíssemos um pouco para que a porta
rangesse e fosse invadida com violência, mantendo-se no
vai e vem característico dos salões do velho oeste americano:
- Bat Nasterson morreu!
A voz de Escarafacho ricocheteou nos cristais da sala e foi
alojar-se no crânio de cada um dos nove comparsas que teimavam
em levar o expediente adiante, como se o mundo lá fora não existisse.
- Bat Masterson morreu... Saquem suas armas!
Ele estava de pé, vestido a caráter. Sua mão pendia à esquerda,
tremula, sobre a arma.
Românticos! Abaixo a produção da ansiedade paralisante!
- Já que vocês não sabem do que se trata, essa rodada é por minha conta...!
Dito isso, lançou o chapéu ao cabide, um metro acima de sua Remington, e girou a bengala entre os dedos como uma hélice negra, até o próximo passo.
Joseph Conrad assistia a tudo, impecável, em sua farda de marinheiro Inglês.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Um bom cara para desejar bom dia

Escarafacho voltou de sua viagem beat – ele acha que foi –
não sem antes reler “O Primeiro Terço”, saltando parágrafos
excessivamente repetitivos... nem tudo que parece, é.
Neal Cassady no velho oeste selvagem de uma família americana
destruída por toda sorte de falsificadores de uísque e alimentada
pela grama verde de Denver, nos anos vinte. Foi em Neal que
Kerouac inspirou-se para o seu On the Road... o fantasma de
Jack London saltava de um trem para outro...
Releu cartas e lembrou-se das que jamais escreveu e que gostaria;
as que passaram por sua cabeça e envelheceram no esquecimento.
Pensando que é possível sobreviver a tudo, Escarafacho escreveu:
“quando digo: tudo bem! bom dia! nem sempre acho, na maioria
das vezes, desejo. É como sentir o sol através da parede quente;
imaginá-la nos braços como poderia... resumindo, sou um bom
cara para desejar bom dia. Penso ( nada original) que o tudo bem
poderia conter um soro que, pulverizado no ar, tornaria as coisas
mais respiráveis... algumas, outras nem precisariam ser
lembradas, já que são atributos de uma mastigação elementar e
intuitiva, como quando o animal rumina tantas vezes até
que o capim lhe dê todo o significado da cadeia alimentar.
O problema é que nos fartamos de engolir a tudo e a todos, como
se fossem parte das nossas necessidades básicas e futuras.
Pensando no favor que precisarei amanhã, mastigo pastilhas antiácidas, hoje.”

Escarafacho sentia-se um ser comum demais para merecer o
respeito próprio, sua autoestima lutava esgrima com sua derrota,
ninguém sairia vivo daquele duelo. Algo precisaria acontecer
para que um novo ciclo se iniciasse.
Foi aí que aconteceu o tal milagre que alguns romeiros vão buscar
de caminhão; e que os obreiros pagam caro para o pastor que
administra as indulgências de Deus. Nesse caso particular,
eram apenas alguns seguidores que haviam armado suas barracas
à margem da ferrovia virtual e aguardavam o próximo cargueiro...
Sejam bem vindos! Foi o que disse o velho guarda trilhos com sua lanterna de azeite.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Terra da gente

Terra da gente arde no pé,
é um não sei tantas vezes
quanto perguntar.
Longe todo mundo quer voltar,
coisa de umbigo enterrado,
dente no telhado.
Um dia você vê na terra alheia
o que não via
e se expatria até os pecados:
os rastros ficam lá,
menores que os sonhos.

Preâmbulo II

IV


Não basta. Falta e sobra nas dobras
do lençol, da calça e vamos pisando
o velho caminho da herança furtiva
sem desejar que nos vejam, sem que
tenhamos aberto a própria picada e os
insetos estejam sempre à procura da luz
e se faça dia e dias que ninguém se dá conta
da conta que outros pagam em favor
do favores nosso de cada dia; e a cada dia
seguimos adiando e passando nossa herança,
pais para filhos, até o fim: um desvio é uma
vergonha vermelha até esquecermos embaixo
do tapete o lixo da sala de visitas, melhor nem
pensar,atrás da moldura a dura estaca de espetar
vampiros; meu coração, quem pôs as mãos,
patas para reanimá-lo, animal de músculo endurecido
de não sofrer? E é como escolher, mas já não é
tempo de colher, toda a safra já foi vendida, estocada
para na próxima fome alcançar o maior preço.
O apreço em dedicar um desejo não tem serventia.


V


O último sou eu. Apago a luz, fecho a porta
por nós e vou rir das bravatas, fazer bandeira
de São João com gravatas, tuas e minhas; adivinha
que em terra de rei um olho cego é Camões:
olho de vidro para ele, com quis Paes no poema
e nem sei com quantos pemas se faz uma lagoa.
À toa, à toa com disse a andorinha da vida boa
que passou pelo Bandeira. A cidade é pequena,
provinciana com seus ingleses em bronze,
benfeitores com patente, pioneiros de louça e moças
católicas iniciadas em letras e prendas do lar:
centros de mesas e os papéis dando conta da exportação
de cera; antes era a carne de boi e a lama nas botas
e a fé inabalável no novo mundo. De onde viemos não
fomos longe, paramos aqui, onde sempre estivemos
de frente para o atlântico esperando o milagre.



VI


Do mar o sargaço, pés cobertos de espuma, escuna
que partiam e chegavam, lendas de linho e lenços,
carvão para as fornalhas. Enquanto eu estava por aí,
espectro, espírito sabe-se onde e em quem, vagando,
na fila à espera da vez de atracar essa nau de ossos
e correr para o ofício de desentender e abrigar-se em
terra alheia seguidas vezes ,como na Bahia
em agosto de 1981, a notícia da morte de Glauber em
um beco escuro onde só a voz do locutor me alcançava
e esquecia; em Teresina nas mesas da Punaré enquanto
desenhava o país com o Giz de Brecht e Darcy Ribeiro
no chão da sala da minha casa em Timon: “largue esse
negócio de índio de mão, escreva sobre futebol,
carnaval...” tantos anos atrás o Humor Sangrento
de Arnaldo Albuquerque num casebre em São Cristovão,
os longos cabelos de Helena. Quem tem as suas histórias,
vida espalhada de pernas pro ar e cacos de vidros próximos ao
pulso sem saltar pro lado de lá, e mergulhos profundos sempre
voltando à tona para respirar o caos e o tao mesmo que você
se ache um equivoco: “inventaria-te antes que os outros te
transformem num mal- entendido” como Rogério Duarte
ouviu do Glauber.



VII



Foi calando de desgosto, adquiriu travo
como caju rançoso e moldou o olhar à moda
dos mouros diante das espadas e voltados
para Ala; só de olhar já delineia o campo de pouso
do individuo ou mariposa. Tudo para proteção do
restinho de lucidez e compaixão que ainda reserva
ao próximo. Quem vem lá? Já não diz e quis que assim
os filhos o seguissem, cada uma no seu feitio de índio
ou negro, conforme matriz. Agora essa de ver tudo em 3D
como quando o cabra não é grande coisa e na aparência
veio de Roma com a boca cheia de dobrados e o lábio de beijar
a mão do papa para ir adiante com sua fama de Pasolini,
sendo que sequer deitou no feno ou no cargueiro lavou o
porão. Deus pai perdoe os pecados dos puros e impuros e dos
bestas às avessas sendo que no mercado toda bosta tem um
preço.



VIII



Ao fim da festa ouço um jazz como fonte
inesgotável de diferentes cultura numa fusão
de tropeço e arranhaduras e notas que entortam
e levantam para arremessar para além do claro escuro
o que apenas se revela no momento exato em que se dobra,
e não é nada que seja possível carregar, apenas
Buddy Bolden com seu trompete, sendo a alma o transporte
possível para a propagação natural da música em estado
original, como o pecado que abriu as portas do prazer
no paraíso de Adão e Eva. O Jazz é a mordida da maça da música.
Escarafacho toma sopa de jazz sempre que se reporta
ao bairro operário da Coroa, onde outrora mulheres
deslizavam em salões de assoalhos brilhando de cera
Moraes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Preâmbulo

“No Contra pé do Goleiro”é pra ser levado
em conta. Foi o que confidenciou Escarafacho
a um amigo, minutos antes de decidir postar os
fragmentos recém copilados de um catatau avulso
( que nada tem a ver com o Livro “Catatau” de Paulo
Leminski). Abandonado por uma afegã
de unhas vermelhas, em pleno bazar de Cabul,
tendo sobrevivido a uma burca preta e sua tela
de visão, achou-se perdido e recompensado por
não valer grande coisa, afinal, da aldeia de onde
fora lançado ao mundo por obra de um grito
de socorro de uma empregada doméstica da Ilha
das Canárias, nada fazia sentido, principalmente
voltar à terra natal, uma vez que o filho que volta
é aquele que não deu certo na viagem de ida.
De posse dessa filosofia, Escarafacho abriu sua
caixa de ferramentas e foi brincar à moda On the Road,
seres precursores da geração beat, criadores
da escrita espontânea. Ele mesmo, enquanto nascia
nos anos cinquenta, ouvira o Uivo de Allen Ginsberg
ecoar de uma galeria em San Francisco, foi sua
primeira premonição. Depois disso saiu nas pegadas
de um guaxinim e nunca mais se achou. Mesmo em casa
era um estranho, um boto que em noites de lua passeava
por praias de areias brancas às margens do Tapajós.

I

Onde vou parar, onde vou
não importa mais a fonte,
tudo gira e gira no grande
parque de brinquedos eletrônico:
eu robô, você robô apertando
os botões, abotoando a camisa;
todos sabemos da palavra dita
quando convém, amém!
E segue o cortejo em busca
da obra perfeita, do fato novo,
embora digamos não, não, sonoro
no soro de todo dia, não importa
que eu saiba, o outro precisa
saber e ficar convicto, o outro
sempre depois de mim, sempre
paráfrase de mim mesmo, plágio de
mim, do eu que ergui: ainda serei
de bronze maior do que sou.

II

Vou mais além, nada disso
importa: seguir atravessar
versar sobre quase tudo e tudo mais
um pouco depois de quem já foi
ao inferno por uma mulher e contou
do fogo e dos amigos e inimigos
nem tão fantasmas como agora, Dante
e antes esse inferno com os seus;
vejo-os atrás das películas escuras
acenando, não sendo possível
reconhecer em público enquanto
passam e passamos todos cheios de graça
na caça à raposa, à fêmea nova
virtual, ao macho, tudo igual como sempre foi
e depois de ter deixado o esforço
para depois, esquecer; o leite do gato
em Lady Vestal (quem bebeu?). Quem brindou
ao Gigolô de Bebelôs: já acordo
me sentindo cansado, disse o poeta; vamos
lá, essa merda vale a pena e a pena é verde.

III

Nem bem nasci e todo dia é dia
de ir adiante, embora para alguns
nem sempre seja o que é; cada vértice
separa pra si a melhor parte da figura
e lá adiante, na dobradura, onde bifurca,
cada um segura a sua onda de viver,
a barriga cheia de percalços,
como quando o sapato aperta o calo
e eu calo para o vizinho esquecendo
o lixo dormido e dando bom dia;
por mais que olhe em volta, só vejo
o umbigo, poço de narciso, alvo que
me liga ao fato de ter um cordão de puxa
sacos sempre tão maior quanto a sombra
procria; o zelo especial em ser o que é, é
um sinal, um alarme que soa como quando
o galho toca a cerca elétrica e o sonho
vira pesadelo com trilha de latidos;
siga os próprios rastro e entenderás o que digo,
assim, no contra-pé do goleiro.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Fauno urbano

A cidade tem os seus, diz.
A prosa torta corta em x
o que quis com o giz dizer

escrita retorcida
expressões em papel de peixe
espinha atravessada

foi extraindo a cidade de si
como os dentes
que ficaram por aí

nas pontas de realidade
fumadas no filtro
o desviu do homem
com sua espiral de nuvem

- uma bolsa nova
para papéis rotos:
( fichário ambulante
acervo de anônimos)
rostos retratados nos bares
lápis convulso no traço

da golfada voam pedras
golfo de palavras
vulcão silencioso que rumina
a própria fala.

terça-feira, 22 de setembro de 2009




Vocês não queiram saber: fui extraviado!
Uma quase abdução sem precedentes, isso
porque depois de dançar um ponto virado
fui sugado pelo oco de um tambor de tronco,
chegando quase a me tornar um tinido.
Por isso demorei.

Nem sempre é assim. Na última vez fui sugado
para o interior de uma burca em pleno bazar afegão.
Senti o hálito quente e a visão do chão. Uma mão
com unhas vermelhas pressionava minha cabeça
para baixo, de modo que ficasse longe da tela de
visão da burca e próximo às coxas. Senti-me
uma refugiado em fuga. Lembrei-me dos 16
decretos do Talibã... agora é trade, pensei.
No interior de uma burca a mulher se anula e
se ausenta, protegida dos olhares, olha sempre
na mesma direção, do contrário tem que mexer a cabeça
e o homem percebe para onde olha.
Senti duas mãos quentes me puxando para cima.
Subi deslizando até encontrar a rede e avistar
duzentas burcas perfiladas. Era o harém
do rei Habibullah em desfile pelas ruas de Cabul.
Com que propósito Deus me teria colocado
em tal situação? E o tempo histórico?
Afinal a burca não era uma máquina do
tempo, ou seria?
Alguém me passou uma coca-cola e uma mão de
nozes de pistache.
Fiquei recolhido ao interior daquela burca
até a polícia religiosa dispersar o grupo.
Fui deixado de cócoras numa esquina,
próximo a uma loja de tecidos.
Ainda hoje procuro lembrar do rosto daquela afegã
por trás do véu da burca.

Agora essa. Sugado para o interior de um tambor
de tronco...“ tambor, tambor
vai buscar quem mora longe...”
Voltei a mim próximo à fogueira,
onde os tambores eram aquecidos.
Acorda menino, não vai te encanta!

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O bilhete

Escarafacho deixou
bilhete na caixa.

Queridos,

não esperem por mim para o samba.
É que fui pro Quilombo fazer farinha, comer
beiju, pagar promessa pra São Benedito.
Então, como disse, não me governo:
tambor chamou, eu vou. Bater cabaça,
cantar meus pontos, entrar na gira: o moço só é bom,
bem formoso. É assim que ele é.
Preocupa não! Coração de escarafacho é grande,
leva vocês tudo na viagem pra ouvir o mar quebrar
nas patas do cavalo de Ogum, bem assim , na areia
branca da praia.
Escarafacho promete rezar para Santa Bárbara
da Inglaterra focar bem direitinho as ponteiras das filhas dela,
...naveguei na barca de Holanda... eu naveguei!
E o povo da casa é de esperar uma boa mão cheia
de farinha de puba. A Lu da lua até comeu dela,
jogando na boca um bocado de felicidade.
Depois escreveu tudo num caderninho
e guardou. Um dia ela conta como é bonito.
Maleime pelo errado de minha sorte!

O criado de vocês,
Escarafacho.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O zen do escrevinhador

o texto que acerta o alvo
o alvo que entorta a seta
o arqueiro que faz a festa

Em extinção

Escarafacho-caramujo é um ser muito sensível à realidade,
precisa ir amadurecendo seu próprio verbo amar, do contrário,
morre verde, antes de acasalar.

Às vezes ele precisa de um insentivo para caminhar,
não importa para onde: alguma palavra pronunciada no ouvido,
um movimento dos quadris, um som. Com suas pequenas
antenas ele capta a fêmea e vai emanando ondas magnéticas,
importantes para que ela se mantenha bela e corajosa,
e ele mais apaixonado ainda.

O nosso pequeno ser também é medicinal. Quando bem nutrido
de carinho opera milagres na pele. Percorre as áreas comprometidas
do corpo, os meridianos em desarmonia e, suavemente,
vai restaurando o equilíbrio interior e os desejos mais guardados.

Escarafacho-caramujo é um ser em extinção. Quem souber de
alguma fêmea, na fase adulta, que esteja buscando sua cara metade,
a casa está pronta. Logicamente os dois seriam assistidos de perto
por druidas e magos do semi-árido, além, é claro, de protegerem-se
mutualmente contra os predadores.

A fé professa do Escarafacho é o amor e o humor, sem rumores de
que algo seja impossível. No possível também há perdas e danos.
Reza a lenda que a fêmea-escarafacho também capta, mas não investe,
espera que aconteça. Elas costumam cantar, quase tristes... guardadas
em si mesmas, adoráveis!

Escarafacho é um ser imaginário, encanta-se pelo que jamais teve,
e encantado faz sua dança, mantendo a luz que diz ser sua, única saída.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Esmalte vermelho

Incorporei roendo unhas ao meu dicionário.É a minha senha mágica,
atemporal,desprovida de receios, carregada de surpresas.Protege
um amor tão intenso e inesperado que não se pronuncia,a não ser
no desejo de que as flores no jarro sejam nossas,e as manhãs de
sol no mar,e as palavras em frases comuns de consideração...

O gesto automático,ansioso,artimanha para morder o próximo
pensamento,tempo suficiente para vagar entre o sim e o talvez
um dia, quem sabe! – é apenas um disfarce.Vale o tocar dos dedos
nos lábios,o leve estalo do corte,o fragmento de esmalte no canto
da boca,a boca entreaberta,o gosto em segredo.

Escarafacho é um ser caramujo,caminha com a casa nas
costa e vai deixando um fio de caminho na areia. Serve também
para se ouvir aquilo que se diz em minúcias,quase em silêncio,
e dizer aquilo que é preciso ouvir à distância.Quem sabe,
um dia,escarafacho-caramujo encontre sua musa
roendo as unhas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Dor sem diplomacia

A dor é a mesma
em todos as línguas

nasce igual
onde ser
já não basta

o adorno da dor
não é o grito,
é o disfarce.

Ritual

dúvidas no amor
nenhuma vírgula

mesmo com reticências
lâmina que cintila

metáforas
líricas elipses
nuvens de druidas

flores são perfeitas
um poema

ao espírito
o amor que inspira.

Risível às próprias custas


Ele podia ser qualquer um, com sua farda de cidadão comum e uma dúzia de pirraças cometidas. Apontou uma direção qualquer e seguiu, como se desejasse encontrar o fugitivo que vinha se tornando: obra de alguns medos e pouca paciência para a imobilidade das coisas permanentes.

Uma só cidade, a escolha definitiva; onde haveria de errar até arder a alma e forçar os músculos em seus limites? Não seria justo fenecer de véspera, resistindo como um cróton de jardim

Ele nem bem tinha razão e criara todos os empecilhos para permanecer impaciente,

como um paciente em seus atributos de temor à morte. A diferença no prazer

da dor aliviada.

Quisera ter teimado mais, com mais inteligência do que a habitual imposta pela sobrevivência. Mas as utopias lhes valiam como doses de ânimos e animas nas veias:

nunca permitira um garrote, a não ser aqueles que lhes impediam de sagrar, quando o amor com sua lâmina de telha rasgava carne e osso.

Afogava-se em coisas miúdas: versos embrulhados em silêncios, poemas deixados para depois, uma visita esquecida até as cinzas. Deixava que lágrimas duelassem com cartas d’água, delineando estratégias para permanecer incógnito. No horizonte da suspeita, um esquisito; à meia distancia, faróis de neblina, um acidente. Os que se diziam iguais, aplicavam-se em criar legendas, subtextos nas próprias conjecturas.

Espectador espectro que se distraía com aspectos cactos de sua personalidade, nunca chegou à conclusão do que realmente era: visível a olho nu de si, risível e descartável às próprias custas.

Quando retornou, numa manhã chuvosa de maio, a cidade quis saber, antes de acolhê-lo no esquecimento da rotina, se podia contar com a sua discrição.

passou a interessar-se pela vida pregressa dos mamutes.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O tao do gato

Sem nenhum motivo ou contrato social com a poesia (lembra de Maiakóvsk?), mas por pura dobra de tempo, em lugar do tédio, ócio. Coloco-me a lidar com a realidade que disponho para expor os diálogos à revelia. Podem ser apenas ecos, pardais que habitam a sala de leitura; cajus espatifados nas pedras de castelo ou simplesmente vultos mal sintonizados que se interpõem a espera do grande final.
A galeria abre sua porta de carvalho rangendo velhas dobradiças. A poeira sobre os artefatos e a disposição destes revela um tempo de ausência e inércia. A máquina moedeira de café tem a gaveta emperrada e os dentes travados; no cabo, o polimento natural de um manuseio contínuo. Na medalha de ferro, lê-se: PROGRESSO – A.F& Cia – S. PAULO.
Indo ao próximo café, descubro uma corrente de vento que atravessa a sala. Observo sua nascente e levanto a gola do casaco. Cena tipicamente imaginada, quase um ponto de fuga para que outras realidades sejam vividas com o sabor de um café fresco, forte e quente. A máquina de moer é apenas um objeto com alma que me acompanha.
Cumpro o prometido aos pardais: desde que não caguem na minha cabeça, nem façam ninho sob minhas unhas, podem fugir dos gatos usando a sala.
Os gatos não são meus. São de donos anônimos, como eles em suas sete vidas, ou de domínio público. Aparecem e desaparecem silenciosamente saltando do muro para o telhado e de lá para caminhos que só eles conhecem. O tao do gato é o salto, o mistério. Com um ou outro pardal nos dentes, mesmo domésticos, alimentam o mito dos felinos caçadores. Mas é na ambivalência que reside o sagrado. Bastet, a deusa egípcia, protetora do lar e das crianças, tem a cara de um deles. Por aqui os gatos só têm causado desgraça aos pardais desatentos, ao contrário do que se pensava na Idade Média. Em qual idade estou vivendo mesmo? Tenho minhas dúvidas.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

E eu que pensei que alegria
fosse um recurso natural
inesgotável,
com seu manancial de pureza.
Mas tristeza é um vício
da mesma forma que rir
é expor o frontispício
entre isso e aquilo.

Peito fechado


As duas últimas mulheres que tinham saído dele, cada uma a sua maneira, causaram um estrago danado. A primeira pela demora em desocupar o posto, e a segunda por não ter se demorado o suficiente: as executivas nunca dispõem de tempo suficiente para amar. Quando se permitem não conseguem se livrar da urgência e do peso das metas. Uma tinha todo tempo do mundo para gastar no amor, a outra, tempo algum.

Nosso herói, esvaziado, buscava refugio nas verdades de Buda. A impermanência parecia lhe servir muito bem para fundamentar o duplo estrago. Passava dias espanando a poeira e apagando os rastros das duas fêmeas. Meditava e acompanhava a respiração de perto, mesmo durante a realização das tarefas domésticas. Lavando louça, tinha que fazer um esforço sobre humano para silenciar os diálogos internos que o atormentavam.

Após algumas peças lavadas, o cansaço o invadia, como se lavar alguns pires e xícaras fosse tarefa para Hércules.

Ele tinha permitido que aquelas criaturas ocupassem sua vida como um ato suicida, à moda dos fundamentalistas. Absurdo! Tinha se transformado em um homem-bomba ligado ao passado recente, prestes a invadir a primeira mesquita e abandonar para sempre os sapatos sobre um tapete muçulmano. Descalço, desprovido de qualquer bem material, caminharia até aliviar-se da sensação de incomodo.

Para dois pesos, duas medidas. Aqui o paradoxo pulou em suas costas. O peso do corpo sobre a estrada de pedras adormecia os terminais de sua angustia. O que uma tinha a ver com a outra? Nada! Uma fora lenta e parasita na sua própria estratégia. A outra, cética e urgente, fechada nos seus conceitos de parceiro ideal. Ele, na verdade, tinha apenas hospedado dois seres de tempos e realidade diferentes com a mesma métrica de um poema surrealista. A lírica do amor lhe havia posto a peregrinar recolhendo folhas de um outono, onde apenas duas estações se faziam notar: inverno e verão.

Olhou mais uma vez para o estrago no peito e percebeu que algo diferente, minúsculo, ficara alojado entre a terceira e quarta costela torácica. Abria e fechava um minúsculo olho à medida que respirava. Curvou-se mais para frente, como se alongasse a cervical e, quase de cabeça para baixo, olhou sem nenhuma inquietude para aquele minúsculo olho brilhante que carregava no peito, parecia um olho de serpente, e como tal hipnotizava, paralisava. Tomado por aquele estado de paz, percebeu que as duas mulheres, recém saída de seu peito, lhe haviam deixado um nirvana, como um quarto olho, a 1,5 tsu’en do coração. Ainda sob o efeito daquela visão, levou a mão ao umbigo e sentiu uma espiral, como um símbolo primitivo da fecundação. Sentiu um estalo atrás da nuca, como se uma garrafa de vinho estourasse pelo calor do corpo. O olho parecia brindar a sua própria aparição.

Tomada às devidas precauções para certifica-se de que tudo aquilo era real, fechou os olhos e respirou, esperando, ao retornar o foco, esclarecer aquela visão alienígena em seu peito. Qual não foi o seu espanto! Ao retornar do distanciamento, encontrou o peito fechado, como se uma mandinga lhe tivesse sido aplicada por encomenda.

Sem entender muito bem aquela visão de si mesmo como hospedeiro, voltou a caminhar. Era outubro, os sinos logo estariam anunciando a festa de São Judas Tadeu.

As duas mulheres, ao que se sabe, estão muito bem em suas novas vidas. Uma oficializou-se como segunda mulher e cria o filho, motivo que a levou a essa condição estável. A outra, segundo uma amiga muito próxima, mudou de religião, continua atingindo suas metas na empresa e agora, de namorado novo, um jovem empresário testemunha de Jeová, espera tempo certo para casar.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Um quase-poema

Devo me convencer
de quase coisa
De contemplar mesmo quase nada
As coisas, quase pessoas, batem
quando passam,
algumas quase ficam
e tudo faz que quase acontece .
um poema bem curtinho
como uma minissaia
com as palavras de fora