quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Alta-fidelidade

Nem tive tempo
de ser como sou

foi montando meu
arquétipo
para servir ao seu
feitio

logo eu
que fui feito a facão.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O Mosca morta ( Um transe perigoso)

Bem feito, o prenderam numa garrafa.
Não como se prende o gênio ou a mensagem
para lançar ao mar, mas como se aprisiona
o besouro, na boca do buraco.
Convidado a realizar um transe onde seria
o Mosca Azul, Escarafacho foi surpreendido
pela armadilha: unhas vermelhas empurraram
uma rolha de vidro.
Dentro daquele cilindro transparente, o ar rarefeito,
o silêncio, olhares curiosos, paredes lisas e ele impedido
de voltar a ser o que era. Tudo fazia sentido,
partindo-se do principio de que alguns brinquedos são cruéis.
A imagem daquelas unhas vermelhas estalando no vidro
para chamar sua atenção, era o que precisava para perceber
a realidade de um ser engarrafado: espécime rara,
num corpo que não era seu, numa vitrine que deformava
olhos e bocas.
Salvador Dali poderia ter pensado nisso,
se é que não pintou em uma de suas telas mentais.
E Breton, teria escrito algum poema onde tal imagem
poderia sugerir um fetiche?
Algo precisava ser feito além de explodir a rolha.
Voltar do transe naquelas circunstâncias seria
impossível.
Guardou para si um pouco do ar e caiu inerte no fundo
da garrafa. Sentiu o corpo rolar, bater nas laterais
enquanto ouvia o estalar das unhas tentando reanimá-lo.
Ouviu longe um ranger de vidro e um ar morno abanar suas
asas. Pesou no Nagual, com seu protetor aprisionado na cabaça:
que forma tomaria o seu, quando liberto?
A lei da gravidade o fez escorregar rumo ao gargalo.
Despencou num chão macio e perfumado. Conhecia aquele perfume,
conhecia aquele ladrilho de carne com linhas suaves.
Esticou as pernas, abriu levemente os olhos
e se percebeu próximo a uma boca, vermelha como as unhas.
- Em que mundo fui me meter? Tudo parece precário, fatal
e insustentável? Pensou, enquanto picava a palma da mão
das unhas vermelhas.
Bastou um ai, para que retomasse sua forma original
e esquecesse dos momentos em que foi um inseto aos olhos do mundo.
Metamorfose, sim, mosca morta, não. E pra dentro dessa Boca,
só com ela de joelhos.
Quem sabe no próximo transe.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Escarafacho em transe

Pelo tempo que Escarafacho ficou sumido,
poderia ter sido dado como morto,
extraviado, seqüestrado, trancafiado por porte
ilegal de alguma realidade dura, mentalmente
comprometido, sabe-se lá por qual síndrome.
Mas tudo não passou de um transe literário,
em que, transmutado em meia dúzia de letras,
atravessou um texto alheio e foi arremessado
ao sexto setor, feito frase indesejada.
O pior eram as rugas que o impediam de respirar
e mover-se na direção da compreensão do que
o autor desejou dizer com seu corpo em cuurie new.
A sorte é que o literato preparava seu lixo
para a coleta seletiva e, na ausência do que
fazer, releu o texto: uma meia dúzia de letras
subjugadas, agonizando na sua inadequada utilidade.
Vai que não era tão ruim assim aquela construção,
quando a paixão buscava uma cor para negar-se.
Sobreviveu. Hoje,frequenta um grupo de ex-letras
alheia anônimas,devidamente soletráveis e comprometidas
em ficar longe do lixo. Cada dia uma légua e meia.
Temos tentado, insistentemente, fazer com que
Escarafacho volte ao nosso convívio, com sua mania
de respirar fundo antes de abrir o verbo, mas ele vivi
de um transe a outro, acha que pode chegar a profissionalização,
sendo o que não é. Ou sendo aquilo
que o outro pretenda que ele seja.
Algo assim, temporário.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Afiando facas

Perdi a inocência
e a crueldade dos rapazes
das pequenas cidades
Há muito abandonei o corpo
em chamas
não me chama mais a fama
estou mudo como um turco
afiando facas.

Receituário

Um poema por dia é pouco.
Aumente a dose sem pensar.
Vá aos hai-ku de Suffit Akenat,
volte à Paulo em qualquer direção:
do Catatau ao Ex-estranho.
Viva alguma paixão.
Em caso de desanimo,
um olhar em Frida Kahlo.
E para aquela velha dor: paciência.
Há feridas que saram sozinhas.