segunda-feira, 27 de julho de 2009

O tao do gato

Sem nenhum motivo ou contrato social com a poesia (lembra de Maiakóvsk?), mas por pura dobra de tempo, em lugar do tédio, ócio. Coloco-me a lidar com a realidade que disponho para expor os diálogos à revelia. Podem ser apenas ecos, pardais que habitam a sala de leitura; cajus espatifados nas pedras de castelo ou simplesmente vultos mal sintonizados que se interpõem a espera do grande final.
A galeria abre sua porta de carvalho rangendo velhas dobradiças. A poeira sobre os artefatos e a disposição destes revela um tempo de ausência e inércia. A máquina moedeira de café tem a gaveta emperrada e os dentes travados; no cabo, o polimento natural de um manuseio contínuo. Na medalha de ferro, lê-se: PROGRESSO – A.F& Cia – S. PAULO.
Indo ao próximo café, descubro uma corrente de vento que atravessa a sala. Observo sua nascente e levanto a gola do casaco. Cena tipicamente imaginada, quase um ponto de fuga para que outras realidades sejam vividas com o sabor de um café fresco, forte e quente. A máquina de moer é apenas um objeto com alma que me acompanha.
Cumpro o prometido aos pardais: desde que não caguem na minha cabeça, nem façam ninho sob minhas unhas, podem fugir dos gatos usando a sala.
Os gatos não são meus. São de donos anônimos, como eles em suas sete vidas, ou de domínio público. Aparecem e desaparecem silenciosamente saltando do muro para o telhado e de lá para caminhos que só eles conhecem. O tao do gato é o salto, o mistério. Com um ou outro pardal nos dentes, mesmo domésticos, alimentam o mito dos felinos caçadores. Mas é na ambivalência que reside o sagrado. Bastet, a deusa egípcia, protetora do lar e das crianças, tem a cara de um deles. Por aqui os gatos só têm causado desgraça aos pardais desatentos, ao contrário do que se pensava na Idade Média. Em qual idade estou vivendo mesmo? Tenho minhas dúvidas.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

E eu que pensei que alegria
fosse um recurso natural
inesgotável,
com seu manancial de pureza.
Mas tristeza é um vício
da mesma forma que rir
é expor o frontispício
entre isso e aquilo.

Peito fechado


As duas últimas mulheres que tinham saído dele, cada uma a sua maneira, causaram um estrago danado. A primeira pela demora em desocupar o posto, e a segunda por não ter se demorado o suficiente: as executivas nunca dispõem de tempo suficiente para amar. Quando se permitem não conseguem se livrar da urgência e do peso das metas. Uma tinha todo tempo do mundo para gastar no amor, a outra, tempo algum.

Nosso herói, esvaziado, buscava refugio nas verdades de Buda. A impermanência parecia lhe servir muito bem para fundamentar o duplo estrago. Passava dias espanando a poeira e apagando os rastros das duas fêmeas. Meditava e acompanhava a respiração de perto, mesmo durante a realização das tarefas domésticas. Lavando louça, tinha que fazer um esforço sobre humano para silenciar os diálogos internos que o atormentavam.

Após algumas peças lavadas, o cansaço o invadia, como se lavar alguns pires e xícaras fosse tarefa para Hércules.

Ele tinha permitido que aquelas criaturas ocupassem sua vida como um ato suicida, à moda dos fundamentalistas. Absurdo! Tinha se transformado em um homem-bomba ligado ao passado recente, prestes a invadir a primeira mesquita e abandonar para sempre os sapatos sobre um tapete muçulmano. Descalço, desprovido de qualquer bem material, caminharia até aliviar-se da sensação de incomodo.

Para dois pesos, duas medidas. Aqui o paradoxo pulou em suas costas. O peso do corpo sobre a estrada de pedras adormecia os terminais de sua angustia. O que uma tinha a ver com a outra? Nada! Uma fora lenta e parasita na sua própria estratégia. A outra, cética e urgente, fechada nos seus conceitos de parceiro ideal. Ele, na verdade, tinha apenas hospedado dois seres de tempos e realidade diferentes com a mesma métrica de um poema surrealista. A lírica do amor lhe havia posto a peregrinar recolhendo folhas de um outono, onde apenas duas estações se faziam notar: inverno e verão.

Olhou mais uma vez para o estrago no peito e percebeu que algo diferente, minúsculo, ficara alojado entre a terceira e quarta costela torácica. Abria e fechava um minúsculo olho à medida que respirava. Curvou-se mais para frente, como se alongasse a cervical e, quase de cabeça para baixo, olhou sem nenhuma inquietude para aquele minúsculo olho brilhante que carregava no peito, parecia um olho de serpente, e como tal hipnotizava, paralisava. Tomado por aquele estado de paz, percebeu que as duas mulheres, recém saída de seu peito, lhe haviam deixado um nirvana, como um quarto olho, a 1,5 tsu’en do coração. Ainda sob o efeito daquela visão, levou a mão ao umbigo e sentiu uma espiral, como um símbolo primitivo da fecundação. Sentiu um estalo atrás da nuca, como se uma garrafa de vinho estourasse pelo calor do corpo. O olho parecia brindar a sua própria aparição.

Tomada às devidas precauções para certifica-se de que tudo aquilo era real, fechou os olhos e respirou, esperando, ao retornar o foco, esclarecer aquela visão alienígena em seu peito. Qual não foi o seu espanto! Ao retornar do distanciamento, encontrou o peito fechado, como se uma mandinga lhe tivesse sido aplicada por encomenda.

Sem entender muito bem aquela visão de si mesmo como hospedeiro, voltou a caminhar. Era outubro, os sinos logo estariam anunciando a festa de São Judas Tadeu.

As duas mulheres, ao que se sabe, estão muito bem em suas novas vidas. Uma oficializou-se como segunda mulher e cria o filho, motivo que a levou a essa condição estável. A outra, segundo uma amiga muito próxima, mudou de religião, continua atingindo suas metas na empresa e agora, de namorado novo, um jovem empresário testemunha de Jeová, espera tempo certo para casar.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Um quase-poema

Devo me convencer
de quase coisa
De contemplar mesmo quase nada
As coisas, quase pessoas, batem
quando passam,
algumas quase ficam
e tudo faz que quase acontece .
um poema bem curtinho
como uma minissaia
com as palavras de fora