segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Alma beat

Paguei dez prata por um Lawrence
Felinghetti legítimo no sebo da Vila.
Tinha posto a cabeça desse cara à prêmio
fazia tempo.
Agora minha alma beat pode descansar
por mais um verão.
Tempo suficiente para voltar à caça
às borboletas brancas
que Lorca viu nas barbas do velho Whitmam.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Liame de letras

acordei querendo
ocupar letras comigo:

as oníricas
me levam ao dicionário,
as fêmeas gravitam,
aerógrafo de gueixas

tento que me digam
a medida exata
do que há em mim
que resvala

busco que me segredem
algum mistério em mim
que desconheço

que me passeiem
sons e esporas:

estranho
apesar das horas.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Românticos da rua 50

Escarafacho entrou com um brilho estranho nos olhos.
Impossível não perceber e desviar, como se encarar
fosse invadir. Noite mal dormida; um cigarrinho à toa
sem o devido colírio; um estado pós crise de choro,
depois de assistir na TV um desses casos de superação
da miséria humana que sempre eleva uns pontinhos e
deixa a concorrência correndo atrás de miséria maior;
o que seria? Escarafacho pôs os óculos escuros, recolocou
os fones de ouvido, passou uma panorâmica de 180°
por sobre as divisórias: estava pronto para sumir.
Era sempre assim antes do próximo surto.
Alguma coisa disparava seu olhar. Seus passos pareciam
os de outra pessoa, nos mesmos sapatos; o segurar da xícara
no cafezinho ganhava um ar de mistério, com domínio total
do espaço aéreo entre a boca e o pires, um espaço em colapso,
a depender da gravata e do nó.
Fora assim quando mergulhou na burca negra num bazar em Cabul;
o mesmo quando deixou um bilhete e seguiu para um Quilombo.
Mas dessa vez havia um componente novo naquele prenuncio
de dilúvio. Mesmo nos piores momentos, Escarafacho deixava
transparecer certa alegria em contrariar a sorte. Agora, parecia
trágico, sempre falando em femme fatale, ética, religião...
causava medo ouvi-lo divagar sobre ninfas e medusas.
Não que ele fosse mais neurótico que a maioria dos homens
de sua geração, tentando manter a pegada dos trinta.
Bastou que nos distraíssemos um pouco para que a porta
rangesse e fosse invadida com violência, mantendo-se no
vai e vem característico dos salões do velho oeste americano:
- Bat Nasterson morreu!
A voz de Escarafacho ricocheteou nos cristais da sala e foi
alojar-se no crânio de cada um dos nove comparsas que teimavam
em levar o expediente adiante, como se o mundo lá fora não existisse.
- Bat Masterson morreu... Saquem suas armas!
Ele estava de pé, vestido a caráter. Sua mão pendia à esquerda,
tremula, sobre a arma.
Românticos! Abaixo a produção da ansiedade paralisante!
- Já que vocês não sabem do que se trata, essa rodada é por minha conta...!
Dito isso, lançou o chapéu ao cabide, um metro acima de sua Remington, e girou a bengala entre os dedos como uma hélice negra, até o próximo passo.
Joseph Conrad assistia a tudo, impecável, em sua farda de marinheiro Inglês.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Um bom cara para desejar bom dia

Escarafacho voltou de sua viagem beat – ele acha que foi –
não sem antes reler “O Primeiro Terço”, saltando parágrafos
excessivamente repetitivos... nem tudo que parece, é.
Neal Cassady no velho oeste selvagem de uma família americana
destruída por toda sorte de falsificadores de uísque e alimentada
pela grama verde de Denver, nos anos vinte. Foi em Neal que
Kerouac inspirou-se para o seu On the Road... o fantasma de
Jack London saltava de um trem para outro...
Releu cartas e lembrou-se das que jamais escreveu e que gostaria;
as que passaram por sua cabeça e envelheceram no esquecimento.
Pensando que é possível sobreviver a tudo, Escarafacho escreveu:
“quando digo: tudo bem! bom dia! nem sempre acho, na maioria
das vezes, desejo. É como sentir o sol através da parede quente;
imaginá-la nos braços como poderia... resumindo, sou um bom
cara para desejar bom dia. Penso ( nada original) que o tudo bem
poderia conter um soro que, pulverizado no ar, tornaria as coisas
mais respiráveis... algumas, outras nem precisariam ser
lembradas, já que são atributos de uma mastigação elementar e
intuitiva, como quando o animal rumina tantas vezes até
que o capim lhe dê todo o significado da cadeia alimentar.
O problema é que nos fartamos de engolir a tudo e a todos, como
se fossem parte das nossas necessidades básicas e futuras.
Pensando no favor que precisarei amanhã, mastigo pastilhas antiácidas, hoje.”

Escarafacho sentia-se um ser comum demais para merecer o
respeito próprio, sua autoestima lutava esgrima com sua derrota,
ninguém sairia vivo daquele duelo. Algo precisaria acontecer
para que um novo ciclo se iniciasse.
Foi aí que aconteceu o tal milagre que alguns romeiros vão buscar
de caminhão; e que os obreiros pagam caro para o pastor que
administra as indulgências de Deus. Nesse caso particular,
eram apenas alguns seguidores que haviam armado suas barracas
à margem da ferrovia virtual e aguardavam o próximo cargueiro...
Sejam bem vindos! Foi o que disse o velho guarda trilhos com sua lanterna de azeite.