quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Nós no koan

tudo se funde no koan,
a cuia de vinho, o turíbulo
incensando a alma
na pele púrpura

tudo se mistura em nós,
até os nós
que desatamos dos símbolos,

barro, água, sopro.

nenhuma diferença em
quem está em quem, sou eu
e você me leva, e vou
estando em mim, e vem.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Do avesso

Do avesso, sou eu por dentro
quando teimo ser tento
de tanto que me invento
para passar o tempo.
Tudo se move, mesmo ausente
passado, futuro, presente.
A parte que mais pulsa
abusa de ser matéria,
pára de repente,
quando isso acontecer,
saio de férias.
Enquanto não, vou tentando
por fora ser eu por dentro.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Coisas

Coisas que não fazemos
por pudor
Coisas que não dizemos
por temor
Essa rima seria um achado
se coubesse a coisa toda
O silencio, por exemplo,
tem no templo, mas não revela
o que no tempo foi passado.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Vista curta

Descobri tarde que perdi tempo.
A vista alcança tão somente
o que está à mão; antes
tudo voava em circulo,
agora parece torta a reta
que me desponta.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Farol da Pedra

Na praia da Pedra do Sal
O arquivista de marés
lustra seu farol
à luz do sol

Vindo de Liverpool
para iluminar um sonho,
ilumina o lixo.

O zelador de pipas

Vento leste,
pássaros no céu azul,
verão

fios de alta tenção
apenas em mim: caçadores
com suas lâminas de vidro.

solto a linha
pra você voar

depois diga
se são verdadeiras
as asas de seda

ou corte a linha
com cerol da indiferença.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vocabulírio

Meu vocabulário encolheu,
melhor, derreteu:
palavras líquidas no corpo inteiro,
na cortina do banheiro,
respingos de plurais no espelho,
palavras poças no ralo,
halo em cristais de gelo
na atmosfera do texto,
palavras bolhas
que evaporam em folhas
para que eu possa respirar,
melhor, beber:
e elas nunca matam minha sede
nem aliviam os pulmões.

Ainda morro delas
a todo vapor.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sobre o comentário de Margarida para Revoada...

O poema tem dessas coisas:
cair como orvalho na flor,
até fazê-la voar
desejando ser o que for.

A natureza das coisas
é objeto do poeta
que busca ele mesmo
ser a coisa observada.

Os pássaros batem asas
para fugir do perigo,
o homem olha para si
em busca de abrigo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Revoada

Ser
é tão difícil,
não ter medo
do que possa
acontecer.

Esse vento
e o gesto manso
que envolve,
é tão fácil querer.

Já não basta
emoldurar a foto
ornar o quarto
com borboletas,

tudo parece voar
quando o olhar
não diz o que vem
a ser.

Todas e nenhuma

Adeus
contém Deus,
como Deus
contém o Eu.

Uma palavra
guarda tantas
que mal cabem em si.

Amar, por exemplo
guarda mil maneiras
de sofrer.

Um verbo assim
não apodrece na carne,
reinventa-se
sem meias palavras.

É como o silêncio:
todas e nenhuma.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Alta-fidelidade

Nem tive tempo
de ser como sou

foi montando meu
arquétipo
para servir ao seu
feitio

logo eu
que fui feito a facão.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O Mosca morta ( Um transe perigoso)

Bem feito, o prenderam numa garrafa.
Não como se prende o gênio ou a mensagem
para lançar ao mar, mas como se aprisiona
o besouro, na boca do buraco.
Convidado a realizar um transe onde seria
o Mosca Azul, Escarafacho foi surpreendido
pela armadilha: unhas vermelhas empurraram
uma rolha de vidro.
Dentro daquele cilindro transparente, o ar rarefeito,
o silêncio, olhares curiosos, paredes lisas e ele impedido
de voltar a ser o que era. Tudo fazia sentido,
partindo-se do principio de que alguns brinquedos são cruéis.
A imagem daquelas unhas vermelhas estalando no vidro
para chamar sua atenção, era o que precisava para perceber
a realidade de um ser engarrafado: espécime rara,
num corpo que não era seu, numa vitrine que deformava
olhos e bocas.
Salvador Dali poderia ter pensado nisso,
se é que não pintou em uma de suas telas mentais.
E Breton, teria escrito algum poema onde tal imagem
poderia sugerir um fetiche?
Algo precisava ser feito além de explodir a rolha.
Voltar do transe naquelas circunstâncias seria
impossível.
Guardou para si um pouco do ar e caiu inerte no fundo
da garrafa. Sentiu o corpo rolar, bater nas laterais
enquanto ouvia o estalar das unhas tentando reanimá-lo.
Ouviu longe um ranger de vidro e um ar morno abanar suas
asas. Pesou no Nagual, com seu protetor aprisionado na cabaça:
que forma tomaria o seu, quando liberto?
A lei da gravidade o fez escorregar rumo ao gargalo.
Despencou num chão macio e perfumado. Conhecia aquele perfume,
conhecia aquele ladrilho de carne com linhas suaves.
Esticou as pernas, abriu levemente os olhos
e se percebeu próximo a uma boca, vermelha como as unhas.
- Em que mundo fui me meter? Tudo parece precário, fatal
e insustentável? Pensou, enquanto picava a palma da mão
das unhas vermelhas.
Bastou um ai, para que retomasse sua forma original
e esquecesse dos momentos em que foi um inseto aos olhos do mundo.
Metamorfose, sim, mosca morta, não. E pra dentro dessa Boca,
só com ela de joelhos.
Quem sabe no próximo transe.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Escarafacho em transe

Pelo tempo que Escarafacho ficou sumido,
poderia ter sido dado como morto,
extraviado, seqüestrado, trancafiado por porte
ilegal de alguma realidade dura, mentalmente
comprometido, sabe-se lá por qual síndrome.
Mas tudo não passou de um transe literário,
em que, transmutado em meia dúzia de letras,
atravessou um texto alheio e foi arremessado
ao sexto setor, feito frase indesejada.
O pior eram as rugas que o impediam de respirar
e mover-se na direção da compreensão do que
o autor desejou dizer com seu corpo em cuurie new.
A sorte é que o literato preparava seu lixo
para a coleta seletiva e, na ausência do que
fazer, releu o texto: uma meia dúzia de letras
subjugadas, agonizando na sua inadequada utilidade.
Vai que não era tão ruim assim aquela construção,
quando a paixão buscava uma cor para negar-se.
Sobreviveu. Hoje,frequenta um grupo de ex-letras
alheia anônimas,devidamente soletráveis e comprometidas
em ficar longe do lixo. Cada dia uma légua e meia.
Temos tentado, insistentemente, fazer com que
Escarafacho volte ao nosso convívio, com sua mania
de respirar fundo antes de abrir o verbo, mas ele vivi
de um transe a outro, acha que pode chegar a profissionalização,
sendo o que não é. Ou sendo aquilo
que o outro pretenda que ele seja.
Algo assim, temporário.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Afiando facas

Perdi a inocência
e a crueldade dos rapazes
das pequenas cidades
Há muito abandonei o corpo
em chamas
não me chama mais a fama
estou mudo como um turco
afiando facas.

Receituário

Um poema por dia é pouco.
Aumente a dose sem pensar.
Vá aos hai-ku de Suffit Akenat,
volte à Paulo em qualquer direção:
do Catatau ao Ex-estranho.
Viva alguma paixão.
Em caso de desanimo,
um olhar em Frida Kahlo.
E para aquela velha dor: paciência.
Há feridas que saram sozinhas.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mecânica do novo

Depois que você entende
como a coisa funciona
o piloto automático
lhe induz ao erro.

Como o erro leva a novo
entendimento, o novo vai está
em outro sentimento
ou no erro que escapou.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Fora de tempo

Tenho me virado como posso
todos esses anos – quantos?
Que importância tem
tardes, manhãs, ossos noturnos
estendidos.
A cidade, alvo predileto
é um elo perdido.
Do avesso, olhos não lidos
flertam com o umbigo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Costas largas

Escarafacho tirou a medida e viu
que não possuía. Fora das medidas,
fora dos padrões, tinha que arcar
com a responsabilidade de não ter
sombra, a não ser aquela que todo
mortal um dia teimou em pisar,
brincando com o sol. Sombra para
fazer de conta que trabalha, para
achar que tem mais direito que deveres,
essa ele não possuía. E achava indecente
favorecer-se de um expediente próprio
do desprovido de capacidade e méritos.
Afinal, ser parente ou afilhado
de alguém influente e beneficiar-se,
soprando aos quatro ventos que isso lhe
garante um passaporte à preguiça e
impunidade, é meio caminho à delinquência
constituída.
Escarafacho bateu o ponto na repartição
e foi atender o primeiro chamado.
Uma onda de parasitas tinha invadido a
sala de combate às traças. Todos vinham
com indicação de suas poderosas sombras
procriadas in vitro.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pátio de manobras

no vagão da infância
tudo parecia nos trilhos

vieram as manobras
no pátio das estações

vagos destinos,
no verde da blusa
todos éramos esperança

maquinistas,
com sonhos movidos
à lenha.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Rosas na Paulista

Expostas no vão
do vã abrigo do corpo
em ponto morto
rosas vestem fuligem.

Fui

Palavras carregadas
de flores do cerrado,
barro vermelho,
grama amarela.

Árvores retorcidas, casca grossa
sombra rarefeita.
Na chapada um corisco risca
o caminho de casa:

O vento seco corta em fatias
o abraço.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Texto perdido

Hoje, eu e você perdemos para a máquina.
Depois de longo tempo convencendo palavras
a expressar sentimentos e fatos e eventos,
ela simplesmente se ausenta e me deixa
escrevendo para o vento. Perdi tudo.

Perder coisas ditas não é como não dizer.
É como um desejo que se realiza
ao mesmo tempo que nos frustra.
Aquela peça tirada não se sebe de onde, retorna
para um lugar entre a lembrança e a ilusão de ter sido.
Aquela verdade nascida de uma intuição veloz,
perde-se do tempo real, e em busca do tempo perdido,
torna-se conceito, onde o ritmo a escraviza para realizar
aquilo que já não é , mas que quer
voltar a ser... Chega! Perdi.
Mas ganho agora, dessa maneira, descrevendo como é
não ter sido, não ter alcançado a finalidade do texto.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Retorno

Assim como foi
veio, de trás pra frente
partido ao meio

correndo como corria
não seria
o último a saltar

laço de fita
em dia de festa
peça de arreio.

Rascunho salvo automaticamente

Passar do ponto é rotina do sonolento.
Outro tento é achar que no ponto em que se
encontra é um desatento.
Todas as medidas parecem exatas
quando não existem dúvidas.
Ausentar-se pode parecer apenas
fechar os olhos, como sonhar pode
fazer a diferença.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Escarafacho: o tempo que o tempo tem

Mais fora do contexto do que
o normal. Esse dom de extrair-se,
saltar para fora da bolha, insinuar
o fora de foco, para depois pegar
o primeiro trem, é dele: Escarafacho.
Um exímio matador de tempo, onde
orelhas são digeridas sem intenção de
compra; pernas tatuadas são lidas
em contraponto com o andar; gestos
de anônimos catalogados ao lado
de olhares, tudo em nome da curiosidade.
Quem é quem? Diz o quê? Sobre para
onde segue o assunto e que linha anterior
apontou... Mal abre a boca. Tem medo
que as palavras escapem. Já os olhos
lanceiam sem que sejam percebidos.
Foi nesse clima de curiosidade S/A
que ele passou a tarde na Av. Paulista
esperando a chuva, previamente anunciada
nos telejornais.
Quantos andariam assim, parecido com
fumar nas calçadas, longe das marquises
e toldos de lojas... Difícil é cada um não
buscar um tempo extra, fora do marca-passo
financeiro, quebrando o ritmo da ciranda que
não é de Lia.
Há algo de triste no observador. Talvez
seja o olhar bebendo outros, misturado à
melancolia. Poucos riem na rua, o que já
bastaria como o grafite.
No balcão do Café Viena, um gosto de menta
numa medalha de chocolate. O forte do Expresso
é o tempo e o amargo que sobrevive. Você pode
até ser esquecido, não faz a menor diferença.
O mínimo tempo fora do contexto, sim. Com um
olhar que não cria tipos. Sentou no último banco
do Pompéia e olhou o relógio. Haverá outro modo
de se aprender a olhar o tempo, que não seja pela
janela de um ônibus urbano, pelo olhar de outro
que assim como ele, sabe, que logo mais sentirá
saudade. Talvez o que tenha deixado pra depois
guarde a relativa novidade de não ter tido tempo
suficiente, para seguir à regra das visitas e abraços.
Chegou e foi, invisível, no tempo que lhe resta.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Pau para toda obra

Tudo posto, os sentidos ficam
por nossa conta: prego na parede.
Entortá-los, afiar suas pontas,
apontar para o ato do último átomo,
e o contrário, extrair matéria bruta
do particular que escapa,
é o pau de toda obra.

quarta-feira, 24 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

Papo reto

Dizer o que se deve
como flora sem pressa a planta
que nunca mais foi vista:
ao que se deu por vencido, o fechado
em copas e ao que virou inimigo.
Tenho todos em mim sem prévio juízo,
alguns, sem cerimônias, devidamente
esquecidos.

Sopa

Você pode mirar-se
no arriado alumínio
de uma concha pendurada
na parede

Você pode achar que a vida
é tudo isso e aquilo

Sopa
é criar um verso
com letras de macarrão
no fundo do prato

depois
dizer que a fome passou.

sábado, 20 de março de 2010

Escarafacho vai a Sampa



Escarafacho andava medonho, triste consigo
mesmo, enfurnado na rotina de uma velha princesa
que lutava para ver reconhecidos seus 300 anos,
só davam-lhe 165, com data festiva em 14 de Agosto.
Para trás ficavam: ermidas, documentos portugueses,
enforcamentos, naufrágios e o sonho de um porto
marítimo aberto ao velho mundo.
Cansado, sofrendo da síndrome de tronco velho,
encastoava pequenas lembranças quando foi
cutucado com vara curta: “Que tal vir passar uns dias
em São Paulo? Eu mando a passagem e você pode
flanar por aqui entre livrarias, cafés, baladas,
Paulista, Consolação, Vila, Libertadores...”
Escarafacho ficou mudo com o coração plugado
entre a euforia e o atrapalho.
Noites sem dormir. Pega não pega. As galinhas
e pintos, quem cuidaria? São tão desastrados...
Mas o convite era um ultimato, considerando que
Sampa era sua segunda terra. A primeira “ardia
no pé.” Vez por outra tinha que correr.
Tirou quinze dias de férias no emprego temporário
e começou a fazer as malas e contas para sobrar algum.
Farinha de puba, cadeira preguiçosa, camarão, mel,
caranguejo, azeite de dendê direto do Quilombo e
duas pedras de Pedro II, ametista com cristal branco,
de 2kg cada, para escora de livros.
Por um triz ele não perde o voo, por puro atordoamento.
- Passageiros do voo 1571 com destino a São Paulo e
Londrina com escala no Rio de Janeiro queiram se
dirigir ao portão de embarque... Ele lia João do Rio
e mergulhara na “alma encantadora das ruas” com
seus ciganos, caça ratos e tatuadores na capital da
República do começo do século XX.
Assento 16D, embarque pela porta de trás. Um loira
ossuda veio informar que ele deveria operar a porta
de emergência da aeronave, caso precisasse, e se ele
não se achasse apto para a tarefa, que ela estaria
providenciando outro assento. Escarafacho, com
o manual na mão, se inteirava da mecânica e confirmava
sua aptidão para o heroísmo.
Logo estaria em São Paulo, abraçando seu editor e piloto
de garinni, gozando de sua companhia e hospitalidade.
Uma gata albina, surda e com um olho de cada cor
o esperava no apartamento da rua Diana, Perdizes.
Lá para o lado do Brooklin, uma índia preparava uma
festa à moda da nova tribo. Também ficaria por lá
uns dias, serrando troncos de árvores e flanando, como
era de se esperar. O homem agradecido tem o rastro fértil.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Alice


Por momento uma simples agulha
lhe impede de cerzi o céu.
Aí sim, ela resmunga e pede
a Deus por todo mundo.

Assim...

Num piscar de olhos se perde o prumo.
Um toque de ombro e o equilíbrio dobra
a esquina. Até você perceber, perdeu o rumo.

É como um ramo que vira adorno
quando florar seria primavera.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Descoberta

Foi chegando como quem desvia,
uma rota rota de trilhas sem objetivos,
e a mão descobre que pode ir além.
Então, alguém lhe previne: assim é perigoso!
E o gesto transformar-se num mal entendido.

terça-feira, 2 de março de 2010

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ícones de barro

Como chamá-los para que percebam-se
na medida exata de suas
conquistas para inglês ver.
Não há nenhum Cabeza de Vaca
conquistando pelo abraço.
Provocarei aplausos e barulhos
para que aceitem suas carcaças
e me deixem em paz de uma vez.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Um para o outro

o tema teima em ser drama
o lema propõe o preceito

a lesma teima em ser lesa
a impressão quer ser real.

A lesão acumula o dano
o lenço assume o linho
o leque deseja o vento

o aceno fica no tempo
onde o olhar pousou,
extinto.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Sobre as pequenas coisas

Diminuir de tamanho,encolher, amiudar,
até que soprá-las seja possível.
Primeiro, destituí-las de suas pretensões
no momento em que se interpõem, depois extenuá-las
em suas próprias imperfeições de inoportunas.
Pequenas coisas nos enganam, nos distraem enquanto
crescem na língua alheia.
Caso queira, você também pode deixar o inimigo
falando só.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Acidente de percurso

Agora que você se foi, estou aliviado.
O que ficou pra depois não vale a pena.
O tempo foi um tutor cansado
que me fez mendigar tardes velozes.
Abreviar meus passos foi como voar.
Seus horizontes enganam
como os lagos artificiais.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A Lamparina

A mulher sempre bota o peão pra rodar.
Baudelaire dedicou “ Os Paraísos Artificiais”
a ela, “a mais comum fonte das mais naturais volúpias”.
...” a mulher é o ser que projeta a maior sombra e a maior luz
nos nossos sonhos.”
Recordo da noite, que, furtivamente invadi
uma caverna para roubar da mão de um homem de camisolão, uma lamparina.
Ele vivia seu ideal de condições para exercer o ato criador
e interrupto de escrever. Junto com ela vieram algumas reticências de um escrito interrompido e a figura da mulher como “leitora em sentido puro”.
O escrito roubado lembrava um coito interrompido a la Mondero, num bar de Os Detetives Selvagens. E a depender do ponto de observação, um original do estilo “sedução pela letra”.
Caminhei com a lamparina na mão até o vento apagar. Nenhuma mão feminina me veio toma, para que o resto da noite fosse dela ou da insônia..
Nunca sei onde quero chegar. Talvez apenas passar, como um clarão de pavio curto, suficiente para iluminar um quintal e espantar mucuras; vivo de assombros e assobios...
Como uma vela de festa a lamparina voltava a iluminar por si mesma, intermitente, toda vez que o vento sobrava e novas vozes ecoavam.
Percebi que não era uma lamparina comum e, de algum modo particular, estaria associada a uma dama pelo resto da vida, como uma fatalidade: atravessar o tempo com um fantasma de saias.
Descobri que além de todas as peças roubadas vieram aspas, para remeter à quem de direito aquilo que encontramos no outro.
Pensei no direito canônico de existir à deriva e à margem, contabilizando fagulhas nos dormentes queimados. Seguia buscando coragem para mudar de vida.
Meu lado afoito tinha pegado fogo, e o outro, chamuscado, batia a tisna preta.
Ocorreu-me de escrever com a segunda metade, algo que me recolocasse no fogo. Afinal, se falava tanto na morte da poesia que cheguei a vomitar parágrafos inteiros. O mau cheiro da prosa só recende depois da morte.
Restava-me devolver a lamparina de K; restava-me concluir Bolaño e, quem sabe, compreender melhor “O Último Leitor”. Estava cansado de Felice Bauer, de roer unhas sem resposta alguma; de colecionar mitos, de Isolda a Leila Diniz...
Soprei a chama e encostei a cabeça no cepo: a noite seria longo e eu esperaria.
Pensei no russo de gravata amarela. Antes, porém, reli
LIlitchka! , numa tradução do Augusto: “Amanhã esquecerás/que te pus num pedestal,/que incendiei de amor uma alma livre,/e os dias vãos – rodopiante carnaval -/dispersarão as folhas dos meus livros...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Achados & Perdidos

Coisas se perdem quando não cuidamos,
ganham contorno de pequenas lembranças,
até caírem na total falta de importância.
Para algumas é o caminho natural,
outras deixam um vazio incômodo.
E seguimos tão autossuficientes
que chega a doer. O pior é que vicia.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Constelar

quando já não somos
a tarde nos ensina:
se o corpo de um declara
para o outro que declina,
consta que constelar
trás o melhor clima.
mesmo que o consórcio
tenha falido sem decoro,
haverá alguma estrela
prateada no choro:
quando já não somos
uma chuva leve
parece tempestade.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Guia prático, nem tanto

Um dia vou te escrever contando tudo.
Enquanto não, não faça nada.
Deixe esquecido o tudo mais.
Lembre-se que o tanto faz é perigoso,
e o além do que não é um além-mar.
Deve existir um sufixo de origem
tupi-guarani que caiba perfeito
em você, com seu belo hífen
recém-casado.
O que devemos usar para ligar
duas ou mais pessoas que se combinam?
Ainda não perdi a noção de composição,
meu Girassol Vermelho...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Fusão

No encontro da tarde
com as garças
o sol
olhar de quem parte

No verde do mangue
o branco da plumagem
frutos que voam.