terça-feira, 25 de agosto de 2009

O bilhete

Escarafacho deixou
bilhete na caixa.

Queridos,

não esperem por mim para o samba.
É que fui pro Quilombo fazer farinha, comer
beiju, pagar promessa pra São Benedito.
Então, como disse, não me governo:
tambor chamou, eu vou. Bater cabaça,
cantar meus pontos, entrar na gira: o moço só é bom,
bem formoso. É assim que ele é.
Preocupa não! Coração de escarafacho é grande,
leva vocês tudo na viagem pra ouvir o mar quebrar
nas patas do cavalo de Ogum, bem assim , na areia
branca da praia.
Escarafacho promete rezar para Santa Bárbara
da Inglaterra focar bem direitinho as ponteiras das filhas dela,
...naveguei na barca de Holanda... eu naveguei!
E o povo da casa é de esperar uma boa mão cheia
de farinha de puba. A Lu da lua até comeu dela,
jogando na boca um bocado de felicidade.
Depois escreveu tudo num caderninho
e guardou. Um dia ela conta como é bonito.
Maleime pelo errado de minha sorte!

O criado de vocês,
Escarafacho.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O zen do escrevinhador

o texto que acerta o alvo
o alvo que entorta a seta
o arqueiro que faz a festa

Em extinção

Escarafacho-caramujo é um ser muito sensível à realidade,
precisa ir amadurecendo seu próprio verbo amar, do contrário,
morre verde, antes de acasalar.

Às vezes ele precisa de um insentivo para caminhar,
não importa para onde: alguma palavra pronunciada no ouvido,
um movimento dos quadris, um som. Com suas pequenas
antenas ele capta a fêmea e vai emanando ondas magnéticas,
importantes para que ela se mantenha bela e corajosa,
e ele mais apaixonado ainda.

O nosso pequeno ser também é medicinal. Quando bem nutrido
de carinho opera milagres na pele. Percorre as áreas comprometidas
do corpo, os meridianos em desarmonia e, suavemente,
vai restaurando o equilíbrio interior e os desejos mais guardados.

Escarafacho-caramujo é um ser em extinção. Quem souber de
alguma fêmea, na fase adulta, que esteja buscando sua cara metade,
a casa está pronta. Logicamente os dois seriam assistidos de perto
por druidas e magos do semi-árido, além, é claro, de protegerem-se
mutualmente contra os predadores.

A fé professa do Escarafacho é o amor e o humor, sem rumores de
que algo seja impossível. No possível também há perdas e danos.
Reza a lenda que a fêmea-escarafacho também capta, mas não investe,
espera que aconteça. Elas costumam cantar, quase tristes... guardadas
em si mesmas, adoráveis!

Escarafacho é um ser imaginário, encanta-se pelo que jamais teve,
e encantado faz sua dança, mantendo a luz que diz ser sua, única saída.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Esmalte vermelho

Incorporei roendo unhas ao meu dicionário.É a minha senha mágica,
atemporal,desprovida de receios, carregada de surpresas.Protege
um amor tão intenso e inesperado que não se pronuncia,a não ser
no desejo de que as flores no jarro sejam nossas,e as manhãs de
sol no mar,e as palavras em frases comuns de consideração...

O gesto automático,ansioso,artimanha para morder o próximo
pensamento,tempo suficiente para vagar entre o sim e o talvez
um dia, quem sabe! – é apenas um disfarce.Vale o tocar dos dedos
nos lábios,o leve estalo do corte,o fragmento de esmalte no canto
da boca,a boca entreaberta,o gosto em segredo.

Escarafacho é um ser caramujo,caminha com a casa nas
costa e vai deixando um fio de caminho na areia. Serve também
para se ouvir aquilo que se diz em minúcias,quase em silêncio,
e dizer aquilo que é preciso ouvir à distância.Quem sabe,
um dia,escarafacho-caramujo encontre sua musa
roendo as unhas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Dor sem diplomacia

A dor é a mesma
em todos as línguas

nasce igual
onde ser
já não basta

o adorno da dor
não é o grito,
é o disfarce.

Ritual

dúvidas no amor
nenhuma vírgula

mesmo com reticências
lâmina que cintila

metáforas
líricas elipses
nuvens de druidas

flores são perfeitas
um poema

ao espírito
o amor que inspira.

Risível às próprias custas


Ele podia ser qualquer um, com sua farda de cidadão comum e uma dúzia de pirraças cometidas. Apontou uma direção qualquer e seguiu, como se desejasse encontrar o fugitivo que vinha se tornando: obra de alguns medos e pouca paciência para a imobilidade das coisas permanentes.

Uma só cidade, a escolha definitiva; onde haveria de errar até arder a alma e forçar os músculos em seus limites? Não seria justo fenecer de véspera, resistindo como um cróton de jardim

Ele nem bem tinha razão e criara todos os empecilhos para permanecer impaciente,

como um paciente em seus atributos de temor à morte. A diferença no prazer

da dor aliviada.

Quisera ter teimado mais, com mais inteligência do que a habitual imposta pela sobrevivência. Mas as utopias lhes valiam como doses de ânimos e animas nas veias:

nunca permitira um garrote, a não ser aqueles que lhes impediam de sagrar, quando o amor com sua lâmina de telha rasgava carne e osso.

Afogava-se em coisas miúdas: versos embrulhados em silêncios, poemas deixados para depois, uma visita esquecida até as cinzas. Deixava que lágrimas duelassem com cartas d’água, delineando estratégias para permanecer incógnito. No horizonte da suspeita, um esquisito; à meia distancia, faróis de neblina, um acidente. Os que se diziam iguais, aplicavam-se em criar legendas, subtextos nas próprias conjecturas.

Espectador espectro que se distraía com aspectos cactos de sua personalidade, nunca chegou à conclusão do que realmente era: visível a olho nu de si, risível e descartável às próprias custas.

Quando retornou, numa manhã chuvosa de maio, a cidade quis saber, antes de acolhê-lo no esquecimento da rotina, se podia contar com a sua discrição.

passou a interessar-se pela vida pregressa dos mamutes.